DEMOCRACIA E EDUCAÇÃO EMBEBIDAS EM
COMPROMISSO APAIXONADO

Esther Pillar Grossi

Com este conjunto expressivo de palavras, a guisa de titulo, inicio, emocionada e reverente, a homenagem da Câmara dos Deputados ao poeta da ação que foi Anisio Teixeira. Com efeito, é uma alegria festejar o nascimento deste brasileiro que tanto contribuiu para nos enriquecer como nação. Anisio foi uma pessoa inteira, conforme tantos depoimentos dos que com ele conviveram. Dos múltiplos aspectos que o caracterizaram, vale a pena enfatizar, de modo muito particular, o grande mérito de ter sido ele o primeiro compatriota que associou ciência à educação. Foi Anisio, entre nós, quem, por primeira vez, pensou e fez educação com sólidas bases teóricas. Ele as explicitou e as forjou a partir das idéias de John Dewey, filósofo pragmatista americano, de consistência científica reconhecida. Este é um de seus mais notáveis méritos porque, conforme afirmou Paulo Freire, atrás de toda a prática há sempre uma teoria, mesmo que esta não seja explicitada. E nada é mais ineficaz do que uma prática apoiada em teoria fraca ou incoerente. Tomemos o fio e a rede do equilibrista como metáfora ilustrativa dos vínculos entre prática e teoria. A prática é a façanha corajosa de quem se aventura a caminhar sobre um fio. A teoria é a rede que protege o equilibrista nas suas inevitáveis quedas, sendo a rede, nada mais nada menos, do que uma especial reunião de fios. Não simplesmente um feixe de fios mas, sim, uma reunião de fios articulados na trama e na urdidura, da qual resulta um tecido. A teoria é a garantia e o aval da prática. A teoria é o fundo que permite à figura aparecer. A teoria é o alicerce que assegura a firmeza do edifício, construído com as múltiplas práticas que a vida nos exige. A importância da teoria é enorme, em todas as circunstâncias das nossas tentativas de compreender e explorar a realidade, mas ela é particularmente importante quando se trata de educação. Pior do que teoria superada ou superável é teoria inconsistente, teoria mal articulada, tecida com fios incompatíveis. Ela é incompetente para acolher o equilibrista, porque funciona como uma rede furada ou que se rompe na primeira queda. Neste momento, uma das mais graves lacunas do ensino brasileiro é a fragilidade dos modelos teóricos que o sustentam; por isso, a lembrança, o aprofundamento e o elogio do que fez e elaborou Anísio Teixeira é por demais oportuno e útil. Certamente, seu obstinado desejo de melhorar a educação neste país concretiza-se entre nós para nos transmitir força e energia, porque, mais do que nunca, seu jeito de fazer educação é extremamente necessário, ele é imprescindível.

Que esta homenagem ultrapasse a louvação pra lá de merecida, aos 100 anos de nascimento de Anisio, frutificando em conseqüências práticas e palpáveis em favor de nosso ensino, infelizmente ainda tão parecido com aquele do seu tempo, que tanto o ocupava e preocupava, apaixonada e obstinadamente.

Na trilha de suas opções científicas, há um aspecto da vida de Anisio que teve e tem enorme importância para a revisão de um direcionamento enviesado que ainda persiste na perspectiva dos objetivos educacionais no Brasil. Foi a "sua libertação das certezas definitivas da fé católica, não porque houvesse adquirido novas certezas também definitivas, mas porque aprendera um processo, um método diferente de pensar e de colocar problemas" (1). "Só a busca é interessante – escreveu Anisio a Lobato – o achado é sempre pobre, incompleto e infeliz". (2)

O Dr. Fernando Carneiro, renomado pneumologista nordestino, que também fez seus estudos no Rio de Janeiro, e que foi amigo de Anisio, anos mais tarde, pesquisando e ensinando em Porto Alegre, relatou episódio vivido com Anisio no Rio. Relembrou ele que, certa noite, Anisio lhe anunciou: "Fernando, perdi a fé mas não perdi a castidade". Ao que lhe retrucou Fernando, ainda fiel ao ensino jesuítico: "Mau negócio, Anisio. Devias ter perdido a castidade e não ter perdido a fé". Porém, o significado desta ruptura, a qual é enfatizada neste episódio, tem para o Brasil relevância imensa.

A associação indevida entre educação e religião pesa sobre nós ainda de forma sutil e velada, mas muito vigorosa. Ela nos vem, conforme afirmou o próprio Anisio, "da força militante da fé católica que as nações ibéricas se fizeram o maior sustentáculo, a partir de seu esplendor, o qual se constituiu sob o poder papal. Este fato transformou a colonização em extraordinária experiência educacional". Colonização e catequese marcharam lado a lado. E Anisio, que se recusou a tornar-se comunista, por ver aí uma outra via de dogmatismo, não se contagiou pela repetição do viés católico, quando comunistas também usaram a educação como endoutrinação esquerdista, caindo exatamente no que Anisio tanto criticava – a educação para as certezas e não para a busca.

Mas, parece residir aí a confusão em que se emaranhou o então Arcebispo de Porto Alegre, Dom Vicente Scherer, quando encetou campanha cerrada contra Anisio. Para Dom Vicente e uma forte militância católica, se Anisio era tão apaixonado pela educação e não era católico, obrigatoriamente tinha que ser comunista e perigosíssimo. De Porto Alegre acompanhei de perto a expansão deste equívoco criminoso, equívoco que se enraíza na vinculação obrigatória entre educação e religião, ou entre educação e conscientização ideológica. Entender educação, como o fez Anisio, como base e sustentáculo da democracia, porque capaz de gerar o sujeito comprometido com a busca, não entra nos parâmetros estreitos da associação profunda de educação e endoutrinação para algum lado, qualquer que seja ele.

Também parece residir aí outro equívoco grave na orientação governamental dos sistemas educacionais, tanto pela direita como pela esquerda, como já denunciava Gramsci em 1919. Este equívoco é o do ecletismo quanto às bases teóricas do ensinar, fruto, talvez, de uma interpretação distorcida e já referida das palavras de Paulo Freire, de que atrás de toda a prática há uma teoria e de que todo ato educacional é político. A conciliação encontrada para assegurar democracia a este ato político é não tomar partido científico quanto às bases teóricas da forma de ensinar, recusando-se a aprofundar estes instrumentos científicos mais ou menos eficazes, sem se dar conta de que o que é mais escancaradamente político – e político no pior sentido reacionário e conservador – é alienar um enorme contingente de alunos – não por acaso majoritariamente de classes populares – do poder que é o pensamento capaz de relacionar, de estruturar e, portanto, de gerar idéias que movem o mundo.

Acoplam-se, muitas vezes, a estes argumentos o de que a escola formou as classes dominantes que aí estão, portanto, ela tem um defeito de origem e este teria a ver com os conteúdos científicos a ela vinculados, os quais seriam instrumentos burgueses de abuso do poder, contrapondo-se a saberes populares, estes sim, capazes de mudar a sociedade injusta na qual vivemos. Os saberes populares, por sua superioridade, prescindiriam da riqueza dos conhecimentos como ingredientes necessários à estruturação do pensamento. Eles se alimentariam de outra fonte, no limite, inclusive sem necessidade do acesso à leitura e à escrita, a partir de uma falsa interpretação de Brecht, que disse "ser o pior analfabeto o analfabeto político", sem considerar que o iletrismo é o mais encorpado caldo de cultura para o analfabetismo político.

Nada mais expressivo e oportuno, neste momento, do que trazer as palavras do próprio Anisio, em 15 de abril de 1958, dada a sua quase perfeita aplicabilidade, pouco menos de meio século mais tarde. Anisio, respondendo a um nefasto memorial dos bispos gaúchos, como diretor do INEP, distribuiu à imprensa texto em que assim se expressa.

Enuncio as minhas declarações em simples afirmações e negações, que mostram o que propugno e o que combato.

SOU CONTRA

1.- Sou contra a educação como processo exclusivo de formação de uma elite, mantendo a grande maioria da população em estado de analfabetismo e ignorância.

2.- Revolta-me saber que metade da população brasileira não sabe ler e que neste momento mais de 7 milhões de crianças entre 7 e 14 anos não têm escola.

3.- Revolta-me saber que, dos 5 milhões que estão na escola, apenas 450.000 conseguem chegar à 4ª série, todos os demais ficando frustrados mentalmente e incapacitados para se integrarem em uma civilização industrial e alcançarem um padrão de vida de simples decência humana.

4.- Contrista-me verificar a falta de consciência pública para situação tão fundamentalmente grave na formação nacional e o desembaraço com que os Poderes Públicos menosprezam a instituição básica de educação do povo, que é a escola primária.

5.- Aceitando como um dos grandes progressos da consciência brasileira a expansão do ensino médio, que acolhe hoje perto de um milhão de adolescentes, lamento a desvinculação desse ensino das exigências da vida comum de uma nação moderna e o seu caráter confuso e enciclopédico de falsa formação acadêmica.

6.- Revolta-me ver que, de toda essa esplêndida juventude, menos de 5% chega aos umbrais da universidade, frustrando-se os sacrifícios de centenas de milhares de famílias para lhes dar a educação indispensável a uma habilitação real às tarefas de nível médio que lhes estão sendo oferecidas.

7.- Reduzido o ensino, numa pletora de matérias, a um adestramento mecânico pra os exames, nem se vêem preparados para a universidade os que logram o diploma, nem os demais, depois de perderem em frustrações sucessivas os anos mais promissores de sua vida, se vêem habilitados para os mais elementares deveres da vida e do trabalho. Choca-me ver o desbarato dos recursos públicos para educação, dispersados em subvenções de toda natureza a atividades educacionais, sem nexo nem ordem, puramente paternalistas ou francamente eleitoreiras.

8.- Escandaliza-me ver que, em uma população de sessenta milhões em marcha para a civilização industrial, apenas um milhão de pessoas tenham ensino secundário completo e apenas 160 mil tenham educação superior, oferecendo-se à juventude brasileira apenas 20.000 vagas para a formação universitária, o que constitui séria ameaça de colapso para o nosso desenvolvimento econômico e cultural.

9.- Sou contra a dispersão aos esforços no ensino superior pela multiplicação de escolas improvisadas em vez da expansão e fortalecimento das boas escolas.

SOU A FAVOR

Sou a favor de um escola primária organizada e séria, com seis anos de estudo nas áreas urbanas e quatro na zona rural, destinada à formação básica e comum do povo brasileiro.

1.- Sou a favor de uma escola média que continue em nível mais alto o espírito de educação comum da escola primária, mais preparatória para a vida do que simplesmente propedêutica aos estudos superiores, organizada em torno de um currículo mais simples e verdadeiramente brasileiro em que a língua nacional, a civilização nacional e a ciência sejam os verdadeiros instrumentos de cultura do aluno.

2.- A meu ver, os recursos sabiamente assegurados pela Constituição à educação devem ser aplicados como algo de sagrado e à luz de dois critérios básicos:

primeiro, o de assegurar a cada brasileiro o mínimo fundamental de educação gratuita, isto é, a escola primária; segundo, somente custear com os recursos públicos a educação pós-primária de alunos escolhidos em livre competição, a fim de que o favor da educação gratuita não se faça meio de manter os privilégios, mas de premiar o esforço e a inteligência dos melhores.

3.- Sou a favor de uma educação voltada para o desenvolvimento, que realmente habilite a juventude brasileira à tomada de consciência do processo de autonomia nacional e a aparelhe para as tarefas materiais e morais do fortalecimento e construção da civilização brasileira.

É, portanto, uma incoerência homenagear Anisio mantendo as mesmas mazelas contra as quais ele literalmente deu a vida.

No momento em que não só não se asseguram mas se retiram condições adequadas à escola pública, homenagear Anisio Teixeira é uma contradição.

No momento em que se tolera o mergulho na mistura de modelos teóricos explicativos do aprender, está se afrontando Anisio, destronando-o, desperdiçando-o.

No momento em que desaparecem os órgãos de pesquisa educacional, tanto em nível federal como estadual, em que o INEP, por ele fundado e do qual foi diretor, nada mais tem feito do que avaliar, para constatar o óbvio, sem a ação positiva de pesquisa e formação para a eficácia escolar.

No momento em que vários órgãos estaduais de pesquisa educacional também necessitam e não têm substitutos, como perseguir a busca que Anisio abraçou como forma essencial de ensinar?

No momento em que as escolas públicas se empobrecem nitidamente nas suas possibilidades curriculares, mormente na área das atividades artísticas e culturais, sem vestígios do espírito das escolas-parque.

No momento em que as universidades públicas padecem do mais terrível desmonte, torna-se desconexo e disparatado homenagear Anisio Teixeira, uma vez que são também suas as seguintes palavras.

"Só existirá democracia no Brasil no dia em que se montar no país a máquina que prepare as democracias. Esta máquina é a da escola pública".

Queridos filhos de Anisio Teixeira, que nos honram com suas presenças nesta Sessão Solene, queridos amigos, admiradores e, provavelmente, poucos ainda críticos, as razões de muito trabalho no campo da educação pode se afirmar tranqüila e objetivamente, que são mais fortes ainda do que no tempo de Anisio. O que nos vale agora é que ele viveu como viveu, sereno, firme, lúcido e apaixonado.

Ele nos ensinou, com seu esforço, com suas denúncias, com suas realizações. Resta muitíssimo por fazer e vamos tentar faze-lo, inspirados em sua garra, em seu arrojado compromisso com a democracia e com a ciência. Anisio Teixeira permanece conosco, alimentando novas energias, sustentando nossos entusiasmos e aguçando nossas inteligências.

Que todos saibam dos nossos mais carinhosos agradecimentos por sua vida fecunda.