Texto da fala de abertura do I Congresso Brasileiro de História da Educação. Rio de Janeiro, 6 a 9 de novembro de 2000.
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO E POLÍTICA EDUCACIONAL
Dermeval Saviani
Professor Titular da UNICAMP, Coordenador Geral do
Grupo Nacional de Estudos e Pesquisas
"História, Sociedade e Educação no Brasil"
e Presidente da Sociedade Brasileira
de História da Educação - SBHE .Na abertura deste I Congresso Brasileiro de História da Educação quero, preliminarmente, dar as boas vindas a todos os presentes. Ao Prof. Dr. Afonso Carlos Marques dos Santos, coordenador do Fórum de Ciência e Cultura e, em seu nome, à UFRJ, agradeço a acolhida que viabilizou a realização do nosso Congresso aqui no Rio de Janeiro. Ao Prof. Antonio Viñao Frago, convidado especial para proferir a conferência de abertura de nosso congresso, em nome de quem saúdo os colegas da Sociedade Espanhola de História da Educação, os meus agradecimentos pela aceitação de nosso convite. Estendo, ainda, esta saudação aos membros da Secção de História da Educação da Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação dirigindo uma referência especial a António Nóvoa, presidente do Conselho da ISCHE, isto é, a Sociedade Internacional de História da Educação. Em nome do Prof. Mariano Narodowski, presidente da Sociedade Argentina de História da Educação, quero saudar a todos os colegas da América Latina, em especial os representantes das Sociedades de História da Educação dos países vizinhos. Saúdo, ainda, os expositores das Mesas Redondas que prestimosamente assentiram ao convite da SBHE. Um agradecimento muito especial à diretoria regional SUDESTE e à Comissão Organizadora que num curto espaço de tempo e numa conjuntura particularmente desfavorável em razão da greve prolongada que atingiu as universidades públicas, venceu todos os osbstáculos tornando realidade este nosso primeiro congresso. Finalmente, agradeço a todos os participantes desta reunião científica aos quais devemos a pujança de nossa Sociedade que adquire visibilidade neste já memorável primeiro Congresso Brasileiro de História da Educação.
A Sociedade Brasileira de História da Educação, ao congregar os profissionais brasileiros que realizam atividades de pesquisa ou docência em História da Educação, se propõe a fortalecer a área, dinamizar suas atividades, ser um canal de manifestação dos objetivos, aspirações, anseios, expectativas e interesses de seus membros, atuar como sua instância representativa e criar os espaços necessários para viabilizar o desenvolvimento e a consolidação da história da educação explicitando o seu papel na sociedade, de modo geral, e na esfera educativa, de modo particular.
O cumprimento das funções acima sumariadas põe em evidência a relação inevitável da história da educação com a política educacional. E essa relação manifesta-se em termos de influência e dependência recíprocas. Com efeito, a história da educação, enquanto repositório sistemático e intencional da memória educacional, será uma referência indispensável na formulação da política educacional que se queira propor de forma consistente, em especial nos momentos marcados por intentos de reformas educativas, o que ficará evidenciado no tema da conferência de abertura deste congresso a cargo do Prof. Viñao Frago. De outro lado, dos rumos adotados pela política educacional depende o peso que a história da educação irá ter na formação das novas gerações, o que acarreta, no médio e longo prazo, conseqüências relevantes para o desenvolvimento da área. Isto porque é no sistema de ensino que se formam os quadros de pesquisadores e professores de história da educação, residindo também aí o lugar principal de atuação profissional dos historiadores da educação.
É, pois, dessa relação recíproca entre história da educação e política educacional que quero tratar nessa fala de abertura do nosso primeiro congresso. E o farei, em dois momentos: no primeiro, partirei de três episódios para explicitar essa relação; no segundo, a mesma relação será ressaltada tomando como exemplo a atuação de Anísio Teixeira, com o que aproveitarei para prestar uma homenagem a esse grande educador no centésimo aniversário de seu nascimento que estamos comemorando no corrente ano.
1. A relação entre história da educação e política educacional a partir de três episódios:
1.1. Primeiro episódio: um relato de Ariano Suassuna:
Em sua coluna semanal na Folha de S. Paulo Ariana Suassuna escreveu em 18/05/99:
"Certa vez, numa aula que dei em São Paulo, afirmei que as universidades brasileiras pensam e ensinam de costas para o nosso país. E, para provar o que estava dizendo, pedi que levantassem a mão os que, ali, pelo menos uma vez, já tivessem ouvido falar em Kant. Todo mundo fez o gesto que eu solicitara. Fiz então, pedido igual em relação a Matias Aires – e somente um rapaz ergueu, de novo, a mão que baixara. Comentei: Estão vendo? Matias Aires, o maior pensador de língua portuguesa do século 18, era brasileiro e paulista; e, aqui, só é conhecido por aquele rapaz que ali está!. Voltei-me para o solitário e indaguei: Você já leu Matias Aires? Ou somente ouviu falar sobre ele, em alguma das aulas que recebeu? O rapaz respondeu: Nem uma coisa nem outra. Conheço o nome porque, aqui em São Paulo, moro na rua Matias Aires (SUASSUNA, 1999, p.I-2).
1.2. Segundo episódio: um prefácio de Isaías Alves:
Em 1924, por ocasião do lançamento da primeira edição de seu livro Vida e obra do Barão de Macahubas, Isaías Alves relatou no prólogo o seguinte caso:
"Certa vez, em curso de aperfeiçoamento de professores do Distrito Federal, lemos algumas frases de Macahubas e pedimos às educadoras que nos indicassem o autor de cada pensamento. Surgiram os nomes de Dewey, Thorndike, Ferrière, Kilpatrick, e outros notáveis educadores modernos.
Grande foi a surpresa quando apresentamos as obras originais de Macahubas em 1882 e 1883, acerca da ‘Lei Nova’ do ensino infantil e do ensino da aritmética. O brasileiro eminente era desconhecido Os estrangeiros mais modernos dominavam, com as idéias que ele defendera e propagara, a atenção dos mestres da infância"(ALVES, 1942, p.6).
Esses dois episódios põem em evidência a importância não apenas da pesquisa mas também do ensino de história da educação brasileira. Com efeito, em razão do avanço significativo da investigação em história da educação em nosso país, o conhecimento já disponível sobre a história da educação brasileira se ampliou consideravelmente embora exista muito ainda a se pesquisar. Entretanto, mesmo aquilo que já se tornou conhecido dos especialistas não tem sido incorporado como objeto de ensino. Em tal situação, não deixa de ser pertinente o alerta levantado pelos dois autores citados, independentemente de concordarmos ou não com as afirmações por eles feitas. Isto é, não se trata, propriamente, de se discutir se Matias Aires foi ou não foi o maior pensador de língua portuguesa do século 18 ou se o Barão de Macahubas foi ou não um defensor da pedagogia moderna avant la lettre. O que está em questão é o desconhecimento da nossa própria história e, mais especificamente, da história dos nossos pensadores e pedagogos. Ora, a possibilidade de que uma situação como essa seja revertida ou, ao contrário, acentuada tem a ver, em boa medida, com decisões que se tomam no âmbito da política educacional.
1.3. Terceiro episódio: minha pesquisa de doutorado:
Quando se desenrolou no Brasil toda a polêmica em torno da tramitação do projeto de nossa primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional no final da década de 1950, eu me encontrava estudando no seminário em Cuiabá. Nessas circunstâncias, a mim não chegou, naquele momento, nenhum eco das acirradas discussões que se travaram nos principais centros culturais do país, em especial em São Paulo e no Rio de Janeiro, com destaque para a memorável convenção em defesa da escola pública realizada na Biblioteca Municipal de São Paulo em 4 de maio de 1960 tendo como presidente de honra Júlio de Mesquita Filho, dono do jornal O Estado de São Paulo sendo que, da defesa da escola particular, fazia parte Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Athaíde. De 1964 a 1966, como estudante universitário, participei do movimento estudantil que tinha como uma de suas principais palavras de ordem a luta contra o imperialismo. Os estudantes continuavam defendendo a escola pública e tinham como um dos intelectuais de referência Alceu Amoroso Lima, considerado progressista em contraposição a Júlio de Mesquita Filho, taxado de reacionário e lacaio do imperialismo ianque. Em 1968 inicio minha pesquisa de doutorado que teve como tema O conceito de sistema na lei de diretrizes e bases da educação nacional. Fui, então, vasculhar nos arquivos e bibliotecas, a trajetória do projeto de LDB e só então me deparei com a constatação de que, na referida Convenção em Defesa da Escola Pública, Júlio de Mesquita Filho pronunciara discurso inflamado em que taxava o movimento católico, que tinha como um de seus principais líderes Alceu Amoroso Lima, de reacionário e ultramontano. E os estudantes estavam ali, engajados na campanha em defesa da escola pública, aclamando entusiasticamente o discurso de Júlio de Mesquita. Poucos anos depois, no âmbito do movimento estudantil, a situação estava invertida: Alceu Amoroso Lima aparecia como progressista e Júlio de Mesquita Filho era o reacionário. Para nós, entretanto, que participávamos do movimento estudantil, era como se toda a história de Júlio de Mesquita Filho, desde o século passado quando foi fundado o jornal da família, correspondesse ao epíteto que lhe atribuíamos. E, inversamente, toda a história de Alceu Amoroso Lima respaldava a visão lúcida e socialmente avançada que a ele creditávamos. Para mim, os achados da pesquisa histórica tiveram o efeito de uma descoberta da maior relevância aguçando a consciência da importância do conhecimento histórico como condição para a compreensão da própria situação em que nos encontramos. Interpretei a fragilidade das posições assumidas pelo movimento estudantil como conseqüência da falta de memória histórica. E a perda da memória histórica é o que Hobsbawm considera um dos traços mais característicos deste final de século, como fica claro no seguinte parágrafo:
"A destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas – é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem. Por isso os historiadores, cujo ofício é lembrar o que outros esquecem, tornam-se mais importantes que nunca no fim do segundo milênio. Por esse mesmo motivo, porém, eles têm de ser mais que simples cronistas, memorialistas e compiladores. Em 1989 todos os governos do mundo, e particularmente todos os ministérios do Exterior do mundo, ter-se-iam beneficiado de um seminário sobre os acordos de paz firmados após as duas guerras mundiais, que a maioria deles aparentemente havia esquecido"(HOBSBAWM, 1994, p.13).
A partir das lições que nos deixam esses três episódios, consideremos brevemente sua relação com a política educacional que se busca implementar em nosso país, a qual tende a secundarizar a importância dos estudos de caráter histórico. De fato, tenho sentido em nossa comunidade de historiadores da educação a percepção de que a história da educação, enquanto disciplina, tende a desaparecer do currículo dos cursos de pedagogia e, com maior razão, dos projetados cursos das escolas normais superiores ou dos institutos superiores de educação. E, por vezes, tenho a impressão de que alguns de nós tendem a se conformar com isso admitindo que o cultivo da história da educação se concentrará nos cursos de pós-graduação "stricto sensu". No entanto, para lá dos interesses específicos da área que serão prejudicados com essa política educativa já que as oportunidades de exercício profissional diminuirão, cabe considerar a questão mais ampla ligada à formação das novas gerações de educadores que serão privadas do conhecimento sistemático da história da própria atividade a que escolheram se dedicar. Além disso, fica também a questão: a política educacional atual, guiando-se pelo princípio da racionalização dos custos, busca atingir resultados imediatos ligados ao desempenho em sala de aula. Pretende, assim, formar professores técnicos, capazes de se desempenhar perante os alunos em sala de aula, dando conta do programa tal como apresentado nos manuais escolares elaborados de acordo com os "parâmetros curriculares nacionais" propostos pelo MEC. Não se trata, pois, de formar professores cultos, capazes de propiciar aos seus alunos uma formação mais ampla a aprofundada dos aspectos envolvidos no objeto da docência que exercem. Ora, no primeiro caso quando se trata de formar professores técnicos, disciplinas como história da educação ficarão de fora ou ocuparão lugar secundário ao passo que, no segundo caso em que se busca formar professores cultos, esse tipo de disciplina será considerado central nos currículos formativos dos novos professores. Como especialistas em história da educação nós teremos que nos posicionar diante dessa alternativa que nos é posta pela política educacional. E, mais do que nos grupos de pesquisa, a entidade representativa dos estudiosos da área, no caso a Sociedade Brasileira de História da Educação, é a instância apropriada para acolher e viabilizar, através de fóruns adequados, esse debate.
- A relação entre história da educação e política educacional a partir do exemplo de Anísio Teixeira
Dentre os educadores brasileiros com certeza nenhum terá se dedicado, prática e teoricamente, à causa da educação pública mais do que o fez Anísio Teixeira. Desde o início de sua vida pública, em 1924, quando assumiu o cargo de diretor da instrução pública do Estado da Bahia até sua morte, em 1971, toda a sua vida foi dedicada à busca de soluções para o "problema brasileiro de educação"(TEIXEIRA, 1997, pp.39-52 e 251-257), o que o levou não apenas à explicitação dos elementos teóricos do problema mas à formulação e implementação de políticas educativas que pudessem solucionar ou, pelo menos, contribuir para a solução do mencionado problema brasileiro de educação. Sua vida e sua obra se constituem, pois, num rico manancial de idéias e propostas que são de grande valia na formulação de políticas educativas, em especial no que se refere às reformas do ensino.
Entretanto, observa-se que os reformadores, via de regra, se pautam por uma visão ahistórica considerando que a experiência anterior, se não deve ser totalmente removida, deverá se ajustar e subordinar-se à nova estrutura que se quer implantar. Nessas condições, parafraseando Hobsbawm, os historiadores da educação têm por ofício lembrar o que os reformadores esquecem. E no exercício desse ofício os historiadores da educação brasileira já produziram um conjunto significativo de estudos que põem em evidência a importância política da obra de Anísio Teixeira. Mas, ainda conforme Habsbawm, os historiadores "têm de ser mais que simples cronistas, memorialistas e compiladores". Cabe-lhes, com a percepção da dimensão histórica dos problemas enfrentados, não apenas manter e deixar disponível o registro das informações, mas alertar os responsáveis pelos rumos da educação no país trazendo à baila, nos momentos oportunos, as informações que, por ofício, eles detém. E aqui cabe, mais uma vez, considerar que, se essa é uma tarefa difícil de ser realizada e talvez mesmo nem seja apropriada aos grupos de pesquisa é, no entanto, pertinente e mais facilmente realizável através de uma Sociedade de Historiadores da Educação.
Quero, pois, na abertura deste I Congresso Brasileiro de História da Educação e ao ensejo da comemoração dos 100 anos do nascimento de Anísio Teixeira, conclamar a todos os sócios da Sociedade Brasileira de História da Educação a exercer, com a seriedade e empenho próprios do ofício que abraçamos, a missão de preservar e resgatar a memória da educação brasileira lembrando, a partir daí, o que os outros esquecem. No cumprimento dessa tarefa o nosso ofício nos qualifica, senão mais do que aos outros, certamente com um grau maior de responsabilidade, a nos inspirar e nos pautar pelo legado que nos deixou Anísio Teixeira que, pela sua luta incansável na defesa de uma educação pública democrática e de qualidade, acessível a toda a população brasileira, bem mereceu o título de estadista da educação.
Bom trabalho a todos. Que este primeiro congresso, cujo êxito já se prenuncia pela grande acolhida dos historiadores da educação ao chamado da SBHE, seja seguido de muitos outros de intensidade e qualidade sempre maiores concorrendo, assim, não apenas para o resgate da memória da educação mas também, e por conseqüência, para o resgate da própria realidade da educação brasileira para que ela possa, finalmente, corresponder às necessidades e aspirações de toda a população de nosso país.
Referências:
ALVES, I., Vida e obra do barão de Macahubas. São Paulo, Nacional 1942.
HOBSBAWM, E., Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo, Companhia das Letras, 1994.
SUASSUNA, A., Folha de São Paulo, 18 de maio de 1999, p.I-2.
TEIXEIRA, A., Educação e democracia. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 1997.