ANÍSIO TEIXEIRA: filosofia e ação do educador
Josaphat Marinho

Frustração compreensível

A vida cria frustrações invencíveis, mesmo nas horas maiores de justiça e reparação. Como a existência da espécie é incomparável com a de cada ser humano, os fatos ocorrem e se sucedem, multiplicam-se e se renovam além de nossas ambições pessoais. Temos aspirações, materiais ou espirituais, que preencheriam o vazio de nossas vaidades, ou, mesmo, de nossos anseios legítimos, e não as alcançamos. O destino tem dessas tiranias. Em razão do passar incessante das gerações, polêmicas umas e outras adormecidas, de suas conquistas e de suas vicissitudes, há sempre no seio delas indivíduos cujas esperanças se esvaem, como as visões do deserto.

Todos, aqui, decerto, os que hoje integram o Conselho Nacional de Educação - que me distinguiu com o convite para participar deste ato de justiça e a que manifesto vivo agradecimento -, e os que, como eu, ontem formaram o Conselho Federal de Educação, uns e outros, e talvez muitos dos que nos assistem, gostariamos de ter sido pares de Anisio Teixeira no colegiado ilustre.

Conhecendo seu pensamento fecundo por meio de livros, conferências, exposições de motivos, ou retratado em obras e serviços que criou, estimariamos, no entanto, experimentar o convivio cordial e enriquecedor, simples e empolgante, como forma de completar a cultura para melhor interpretar os fenômenos da coexistência, sobretudo no domínio da educação.

Se não tivemos essa fortuna, se nenhum de nós a experimentou, ficaram as lembranças de seus companheiros de plenário. Resumiria a imagem resplandecente em trecho de bela página de Josué Montello:

"A inteligência de Anisio Teixeíra, se se realizava esplendidamente no corpo a corpo com a folha de papel em branco, na reclusão de um gabinete de trabalho, era ainda mais viva, mais brilhante, mais luminosa, nas surpresas de um debate.

Anísio, nessas ocasiões, não precisava pedir silêncio aos circunstantes. O silêncio vinha por si, abrindo espaço imediato à palavra do orador. A figura pequena, miúda mesma, com algo de adolescente no seu todo franzino, como que atuava por explosões sucessivas.

De repente, a propósito de um artigo de lei ou de conclusão de um parecer, Anisio levantava uma objeção. Do outro lado do plenário, o velho Almeida Júnior, sempre com o reparo ferino na ponta da língua, observava-o por cima dos óculos. Os demais companheiros redobravam de atenção.. E Anisío a discorrer, possuído pelo seu assunto. Ele não meditava para falar: a própria fluência verbal era em si o ato de pensar, com a palavra gerando a frase ajustada à lógica de uma estupenda ordenação expositiva. Era como se estivéssemos diante da força incandescente a abrir-se em faíscas. E tudo aquilo era novo, com a força da criação definitiva" (Jornal do Brasil, 12.09.78).

Eis, traçado a pena de artista, o débil perfil físico do espírito robusto.

Compensação

Se não pude, a seu lado, aplaudi-lo no Conselho, tive, antes, uma oportunidade compensadora. Conheci-o na intimidade e na planície, sem nenhum cargo público, quando excluído pela ditadura Vargas da formação do pensamento nacional. Era, então, nos anos 40, simples comerciante de minérios. A informalidade no trato e a agudeza de espírito refletiam a dimensão do homem superior: de inteligência peregrina, culto, genuinamente democrata. Preocupado em acompanhar as mudanças da sociedade, vivia sempre em dúvida, não a dúvida de quem vacila sobre a estrada a seguir, mas a de quem se perguntava e indagava aos outros se a realidade vivida era a ideal ou justa, ou se novos horizontes seriam rasgados.

Parece que prenunciava, nessas perquirições, "a longa revolução de nosso tempo", produto, em magna parte, da ciência e da tecnologia, como veio a examinar, depois de 1945, em duas conferências magistrais, em que revelou mais "perplexidades" que "conclusões". Ao invés de fixar dogmas, situava os contrastes, para desenvolver o esforço de reduzi-los a formas civilizadas de convivio livre e criativo. Não queria a padronização da cultura, antes o confronto de inteligências diversificadas e diferentemente formadas. Empolgava-o a divergência fundamentada, que descobre equívocos, aponta exageros, aperfeiçoa conceitos, conduz a revê-Ios, ou a inovar com objetividade. Alargando e aprofundando análises, não incidia em abstrações. Para ele, "fins inaplicáveis não são fins, mas fantasias. Os fins são verdadeiramente fins quando os conhecemos de tal modo que deles se desprendem os meios de sua realização". E invocando Dewey, matriz de suas reflexões desde a mocidade, rematou: "Os meios são "frações de fins" (Educação progressiva - Uma introdução à filosofia da educação - Comp. Editora Nacional, 1933, p. 21). Pensava e dialogava para alcançar a objetividade.

Alma de educador

Era um espírito lastreado na filosofia social, como fonte de interpretação dos fenômenos da vida, conjugando a especulação, a observação e a experiência. Desse complexo de fatores extraia a matéria prima de seus estudos sobre a educação como problema político. Não temia, ao contrário cultivava, a presença do dado filosófico no seu pensamento. "Nos dias de hoje - escreveu, note-se bem, em 1933 - nos dias de hoje, quando a ciência vai refazendo o mundo e a onda de transformação alcança as peças mais delicadas da existência humana, só quem vive a margem da vida, sem interesses, sem posição, sem amores e sem ódio, pode julgar que dispensa uma filosofia" (Educação progressiva, ed. cit., p. 176).

Não a dispensou até o fim de seus dias, apesar das injustiças sofridas. Quando suspeitado, insidiosamente, em 1935, de orientação extremista, de índole comunista, repeliu a maldade, e pedindo demissão do cargo de Secretário de Educação e Cultura do prefeito Pedro Ernesto, no antigo Distrito Federal, objetou com firmeza: "Se, porém, os educadores, os que descrêem da violência e acreditam que só as idéias e o seu livre cultivo e debate, é que operam, pacificamente, as transformações necessárias, se, até esses são suspeitados e feridos e malsinados nos seus esforços - que outra alternativa se abre para a pacificação e a conciliação dos espíritos? (Educação para a Democracia, 2ª ed., Ed. UFRJ, 1997, p. 34). Exercendo, com o restabelecimento da ordem democrática, outros cargos na direção do ensino, manteve a mesma determinação, fiel a princípios filosóficos. Criador de serviços e obras - que serão decerto apreciados por especialistas - jamais restringiu suas atividades a realizações materiais. Estas eram sempre um desdobramento ou uma concretização de idéias amadurecidas, com que impregnava a administração educacional de valores permanentes. Quando, a exemplo, instalou em Salvador, no Centro Educacional Carneiro Ribeiro, a Escola Parque, essencial para ele não era o edificio condigno, que fez construir, mas assegurar aos filhos do bairro proletário o direito à educação adequada, com as oportunidades ao alcance do Estado. A finalidade social da educação marcava-lhe a ação administrativa. O espírito condicionava as realizações materiais.

Filósofo da educação

O feixe crescente de idéias que iluminava a ação de Anísio Teixeira fê-lo um filósofo da educação. O poder de penetração de sua inteligência levou-o, desde cedo, a ver que o conhecimento não se completa, prolonga-se e se renova, dia a dia, com as transformações da sociedade. De modo singular ele percebeu, como na observação de Leo Strauss, que "a filosofia é, essencialmente, não a posse da verdade, mas a pesquisa da verdade" Qu'est ce que Ia Philosophie Politique?, PUF, 1959, trad. do inglês por Olivier Sedeyn, p. 17). Por isso mesmo, quanto mais estudou e investigou maior foi o seu empenho em alargar o saber, para melhor interpretar as variações da educação, em face da evolução geral.

Desde moço, não via apenas a superfície das coisas. Divisava a profundidade delas. Tendo estudado nos Estados Unidos ainda jovem, não se impressionou com o poder econômico, nem com os arranha-céus, e observou que assim também refletiam os americanos. O que lhe tocou a sensibilidade, escreveu em 1929, foi "a grande tradição nacional de democracia", evolvendo do "direito de ter um voto" para "significar o direito de cada indivíduo de encontrar oportunidade para, na medida de suas forças, se encontrar plenamente no campo econômico ou no campo social" (O espírito democrático da civilização americana, in Rev. de Cultura Jurídica, n. 3, 1929, Bahia, pp. 659-668, cit. p. 663). Trouxe, desta sorte, a convicção das vantagens do processo democrático, titubeante entre nós.

A superveniência do governo ditatorial, em 1930, não lhe modificou o ideário em crescimento. Pensando, ou agindo, em cargo de administração do ensino, suas idéias se foram consolidando. Se considerou sempre a educação problema politico, não admitiu sua subordinação a inspirações partidárias. Para ele, a autonomia da escola constituia pressuposto de sua função social de formação da personalidade e de habilitação do indivíduo a conquistar oportunidades iguais na sociedade, segundo os requisitos de aptidão. Para desenvolver essa tarefa, a escola precisava ser imune a imposições deformadoras, o que exigia um sistema de ensino fundado em leis robustas e executado por um magistério independente, nos moldes do que propôs à Constituinte baiana de 1947.

Já no seu livro Educação Progressiva, de 1933, com o subtítulo "Uma Introdução à Filosofia da Educação", assinalou que "à medida que se alargam os problemas comuns, mais vivamente sentida será a falta de uma filosofia que nos dê um programa de ação e de conduta" (Educação Progressiva, Cia Ed. Nacional, 1933, p. 177) - o que implica repulsa a fatores circunstanciais e desarticulados. Em nenhum aspecto, porém, seu pensamento filosófico sobreexcedeu em ênfase ao com que fixou o papel da Universidade "na sociedade moderna, uma instituição característica e indispensável, sem a qual não chega a existir um povo" (Educação para a Democracia, ob. e ed. cits., p. 122).

Ocorria uma progressão constante no aperfeiçoamento espiritual de Anísio Teixeira. Se a escola pública foi um ponto cardeal de suas preocupações, não envelhecia com a sucessão dos anos:

ampliava a ânsia de pesquisa e de conhecimento. Não desprezando o passado útil, buscava sempre as clareiras do futuro renovador.

Nem tudo que defendeu vingou e nem tudo que previu aconteceu. Na sóbria e exata "apresentação" da nova edição de Educação para a Democracia, o professor Luiz Antônio Cunha pondera que esse livro "está marcado por uma concepção muito otimista a respeito da capacidade da escola na mudança da sociedade". Contudo, reconhece, igualmente, que "suas idéias foram reprimidas não pela força de outras idéias, mas pela força daqueles que as temiam" (Educação para a Democracia. ob. e ed. cits., pp. 15 e 21). Temeram-no ao longo de sua pregação incansável, mesmo na democracia, ao passo que ele, como pensador sem preconceitos, discutia todas as idéias e inovações.

Ao analisar, em 1967, "a longa revolução do nosso tempo", falando a professorandos da Bahia, não traiu os deveres do espírito científico. Não difundiu nenhum dogmatismo. Foi o Mestre raciocinando, não o partidário tentando persuadir. Mas o Mestre não se manteve neutro diante da injustiça. Denunciou as desigualdades, inclusive as estabelecidas por "processos declaratórios" do governo. Acusou que não se fazia a mudança socialista porque parecia "subversiva", ameaçando os "privilegiados", e "a capitalista é indesejável, porque desencoraja os que ainda não são privilegiados". Observou, contudo: "O processo terá, um dia, de chegar a termo" (A Longa Revolução do Nosso Tempo, 1969, in Rev. de Informação Legislativa, abril a junho de 1968, p.p. 45-62). Enquanto esse dia não chegava, continuou a estudar e lutar, no intento de atualização e reforma. Em verdade, esse dia não chegou, para que ele o visse nascer. Não nasceu ainda.

Idéias sobreviventes

Tanto ensinou e combateu, entretanto, que suas idéias continuam a projetar-se no tempo. Realça o professor Luiz Antônio Cunha, na apresentação já referida, que "ler e reler Educação Para a Democracia é um meio de conhecer a educação brasileira em suas mudanças e persistências" (Educação para a Democracia, ob. e ed. cits. p. 27). E, na edição de 19 de março deste ano, do Jornal do Brasil, a pesquisadora Clarice Nunes sublinhou a presença permanente de Anisio Teixeira na discussão de todos os problemas educacionais. "Isso é impressionante - frisa - porque tudo que se fala em educação acaba remetendo a ele: financiamento, formação de professores, reformas de instrução, pós-graduação". Assim é porque ele pensou para o futuro, que agora nos reúne em seu louvor e em sua reparação. Não houvesse pensado com tamanha dimensão e tal intensidade, não seria lembrado e invocado com atualidade tão palpitante.

Última lição

Mas ele nos deixou uma última lição, como estimulo à renovação dos conhecimentos e como testemunho de compreensão do dever do mestre. É a conferência intitulada Cultura e Tecnologia, proferida em 1970 - morreria em março de 1971 - para os alunos do curso de Teoria e Prática de Microfilmagem, do Instituto de Documentação da Fundação Getúlio Vargas. O texto tem o conteúdo do trabalho de pesquisa, o estilo lógico do professor, o sentido de apreciação universal do filósofo. Resume a evolução da cultura ou das culturas, fixando a importância da "cultura tipográfica" e considerando "o microfilme como descoberta equivalente à do livro" - porque "universaliza o acesso do homem de qualquer nação ao saber total da espécie, tanto ao saber antigo quanto ao moderno, e quanto ao de hoje".

É a mensagem derradeira do educador, a uma assembléia de alunos, e não a um corpo de figuras eminentes. Não corresponde ao testamento do seu saber porque nessa conferência abre a perspectiva do "dia em que, além do mercado, que é a dinâmica da procura e oferta, as nações desenvolvidas compreenderão que a cultura é riqueza fonte, riqueza matriz, que deve ser paga e promovida, como é a defesa nacional, por princípios diferentes dos do mercado e comércio. A biblioteca será então bem comum, como a água e a luz, e o microfilme, o recurso novo que a fará tão rica e abundante quanto a dos países desenvolvidos". E se referia "a algo como televisão por assinatura". O juízo percuciente vislumbrava a esteira do desenvolvimento da informática.

Criador de esperanças

Era o talento rasgando sempre outros horizontes, para o conhecimento e a felicidade da criança e do homem.

Diante desse vigor de inteligência criadora, parece que Anisio Teixeira, retomando aos 70 anos o curso de sua vida fulgurante, repetia a mensagem de confiança de Sartre: "Eu morrerei na esperança".

As gerações que lhe sobrevivem, agradecidas pelo bem que transmitiu à sociedade e à cultura, hão de prolongar suas esperanças.