OBS: No dia 14 de março de 1971, Anísio Teixeira foi encontrado morto, em circunstâncias até hoje não totalmente esclarecidas. Ao lado de seu corpo, na pasta de couro que ele carregava quando de seu desaparecimento três dias antes, foi encontrado este manuscrito, provavelmente, o último texto de sua autoria…


Resistência e receptividade à mudança 

O que me surpreende na posição mental do conservador é o sentimento de salvação pública que o domina diante de qualquer movimento de reação que restaure o sentimento de estabilidade com a suposta manutenção do statu-quo. Tudo que, a partir do golpe, se fizer de repressivo, de violento, de injusto e absurdo, deixa de provocar-lhe o sentimento de insegurança em que o lança a simples possibilidade de mudança. Ora, o pânico diante de certa desordem que acompanha o movimento por mudança decorria do tom aparentemente irracional, no sentido de apaixonado, que tomam tais movimentos. Por que não lhe comunica o mesmo pânico a irracionalidade da repressão desalmada e igualmente apaixonada?

Acredito que a natureza humana é normalmente conservadora e que toda mudança provoca estado de inquietação e mesmo de desconforto, senão sentimento de perigo. Isto não impede, contudo, a tolerância e até aceitação das mudanças que tomam o caráter de conseqüência de força maior por parte de qualquer conservador. Os conservadores chegam por vezes a excesso nessa aceitação do que chamam "fatalidade".

Por que então, diante de mudanças que parecem promovidas voluntariamente, tomarem-se de tamanho e tão emocional pânico, e, logo depois dos golpes violentos de conservadorismo, mostrarem-se tão passivos, se não entusiastas, ante os absurdos e injustiças que se seguem aos golpes violentos da direita?

Esta me parece a especial fragilidade e fundamental incoerência da atitude conservadorista e a ilusão em que incide o conservador de estar mantendo a ordem anterior e detendo a mudança. Nem uma coisa, nem outra. Não se mantém a ordem existente, nem se impede a mudança, apenas se acentuam os erros da ordem existente e se agrava a situação criada de necessidade de mudança, que passa a exaltar seus erros e a criar maior perigo para o statu-quo, que seria o objetivo da resistência à mudança pela mudança. Toda história confirma os lugares comuns que estamos alinhando. Justifica-se, entretanto, a surpresa a que aludi a princípio, ante a sobrevivência de estados de espírito que provocam tais reações nos dias de hoje. Porque seria de esperar que a familiaridade com a mudança já estivesse definitivamente aceita pela natureza humana. Com efeito, todo o presente modo de pensar do homem é modo de pensar em termos de mudança. A essência do método científico está em sua posição de juízo suspenso. Tudo que fazemos se funda em hipóteses, sujeitas obviamente a mudanças. Tais mudanças decorrem de novos conhecimentos, os novos conhecimentos decorrem de novas experiências e tais novas experiências do fluxo ininterrupto de mudanças que sobrevêm no processo mesmo de ordem da vida, como é hoje concebida no curso da existência humana.

A atitude e disposição do espírito humano, nessas condições, não podia deixar de ser senão a de considerar a mudança algo de bem-vindo. A mudança é oportunidade de nova experiência, oportunidade de novo saber. Tudo está em aceitar-se a mudança e submetê-la ao mesmo permanente espírito crítico, para se conseguir nova ordem e novo progresso. O dístico de nossa bandeira não é a ordem e o progresso, mas ordem e progresso, isto é nenhuma ordem ou progresso definidos e determinados, mas ordem e progresso como algo de essencial e intrínseco ao próprio viver humano. Nada existe no comportamento humano que possa prescindir destas duas condições, que são as condições da própria vida em todas as suas manifestações. Nas ciências naturais isso se fez lugar comum. Por que, nas ciências sociais julgam alguns homens que se pode deter o processo de mudança? Por que este não é fatal mas voluntário, desejado, promovido pelo próprio homem, que é, afinal, o maior autor do estado existencial anterior? É manifesto o absurdo de tal posição, desde que o homem tomou plena consciência do estado de fluxo da própria vida.

A resistência irracional e emotiva à mudança como tal é resíduo de certo pensamento estático, que prevaleceu há cerca de 2500 anos e foi duramente transformado há mais de 500 anos, com o desenvolvimento da ciência positiva e experimental, não podendo deixar de surpreender-nos sentir quanto aquela forma obsoleta de pensar continua imperando em parcela tão volumosa dos homens de hoje.