TEIXEIRA, Anísio. Carta a Rubem Braga, [Rio de Janeiro?], maio 57.
Localização do documento: FGV/CPDOC - Arquivo Anísio Teixeira - ATc 57.05.00.

Rio, maio 57

Meu caro Rubem Braga: a sua palavra é hoje tão lida, que fiquei com pena de ver, em meio à sua crônica tão humana sobre as Crianças, lançar você uma porção de dúvidas sobre duas idéias que me são caras para a feliz orientação do problema escolar brasileiro: a escola local, regional e não "consular", "metropolitana", em rigor "colonizadora" e a escola completa, rica, variada, com tempo suficiente para se constituir vida e formação da criança...
Se lhe sobrasse tempo para ler coisas ainda mais fastidiosas do que "Educação não é privilégio", teria podido ver que essa escola de tempo integral não é a escola do campo mas a da cidade... e, sobretudo, a da cidade moderna, onde a criança já não poderá ter nenhuma experiência integrada e harmoniosa senão na escola, todos os seus outros espaços vitais - o do apartamento, o da rua, o do clube, o do cinema - sendo parciais, fragmentários e contraditórios... No campo, seria o contrário: a escola poderia ser de tempo parcial, como pensa você, pois a grande e boa educação da criança já se faz pela sua vida simples, mas, integrada, responsável, construtiva e, sobretudo, incrivelmente digna, pelo trabalho e pelas relações humanas diretas, sérias e completas... Ah! meu caro Rubem, se soubesse quanto penso como você em relação à nossa criança rural! Vou tão longe que as dúvidas que me assaltam são maiores que as suas. Duvido que lhes convenha a própria escola de letras. E não nos sendo possível dar-lhes a escola de trabalho e de enriquecimento de sua própria cultura, pois essa escola exigiria professores de grande preparo e muito dinheiro, chego a achar que melhor seria não lhes dar escola nenhuma. Como isto não é possível, defendo para o campo uma escola modesta, de quatro anos de estudo, e que, ainda assim, mais preparará os alunos para poderem deixar o campo do que para ficar...
A escola que possuímos é uma escola para o tipo de civilização urbana, só aplicável ao campo na medida em que ele se urbaniza, reurbaniza, dizem hoje, os sociólogos. Como isto, de fato, acabará por se dar, em todo país, a escola deverá organizar-se tão bem quanto possível nas cidades e ir se estendendo pelo campo na sua missão de lhes transformar também gradualmente a vida...
Já que a escola é, assim, um instrumento de transformação, ou, pelo menos, de consolidação da transformação da civilização rural em civilização urbana, afim de que sua influência não seja exageradamente alienadora , defendo a idéia de fazê-la local e regional. De modo que o meu localismo escolar vai ao encontro de sua dúvida sobre a escola conveniente ao próprio campo. Municipal e local ela se integrará melhor nos defeitos e qualidades do meio, moderando, desse modo, a sua ação naturalmente desenraizadora. A cultura escolar primeiro desenraíza para depois - hélas! só muito depois - plantar de novo e enraizar-nos na humanidade, dessa forma ampla, completa e universal, de que você é um alto e grande exemplo. Daí o nosso cuidado de educadores em acentuar os traços locais e regionais da escola, afim de lhe corrigir a tendência, por assim dizer, congênita de segregar, separar, alienar...
Sabe você, meu caro Rubem, quanto é difícil pensar claro em nosso país. Como o nosso progresso se fez por acaso, julgamos poder continuar a progredir por acaso. A realidade, porém, não é que progredimos por acaso mas que progredimos, até ontem, lentamente e o progresso lento toma conta se si mesmo e acaba por se harmonizar. Mas, o progresso rápido de hoje não tem tempo para esse reajustamento. Todo progresso é um tumulto e uma deslocação e se se faz muito acelerado destrói mais do que constrói e daí ser necessário um reforço substancial na quantidade de educação do indivíduo par suportá-lo e corrigi-lo.
A escola primária da Suíça - um modesto e grande exemplo de civilização estável em meio ao tumulto do mundo moderno - impõe à criança onze mil horas de atividades intencionalmente educativas, a americana, sete mil horas, a melhor escola primária brasileira, aos que a freqüentam integralmente, dá-lhes duas mil e quatrocentas horas!... Por mais gênios que sejamos nós brasileiros, por força que há de sobrar alguma diferença entre nós e os suíços. Grande parte dessa diferença será divertida senão boa mas o restante há que ajudar a mudar... Seu de sempre

Anísio


TEIXEIRA, Anísio. Carta a Gustavo Corção, Rio de Janeiro, 23 fev. 1958.
Localização do documento: FGV/CPDOC - Arquivo Anísio Teixeira - ATc 58.02.23.

Rio, 23 de fevereiro de 1958

Senhor Gustavo Corção: sou um leitor de seus artigos. Acompanho com extrema curiosidade a sua luta entre a independência intelectual, que me parece o seu natural, e o "dogma", sempre pendente sobre sua cabeça, como "Jeovah" sobre os hebreus. Essa espada de Damocles suprime o senso de humor. Como os hebreus, Corção não ri. Condena, adverte, aponta, profetiza tal qual um hebreu. Whitehead nota essa falta do riso entre os hebreus. Certo amigo lhe retorquiu que, quando o assunto é demasiado sério, não se pode rir. Este também me parece o caso Corção. Ainda agora nos seus últimos artigos sobre a liberdade de ensino. Defendo posição essencialmente idêntica à sua. A educação - não só a privada, como a pública - não deve ser sujeita ao Estado, mas, à Sociedade. Por isto defendo um governo independente para a educação: conselhos locais, de composição popular. No fundo, conselho de pais. A política educacional seria fixada por esses conselhos, ajudados pelos profissionais da educação, isto é, os professores. O senhor deseja, ao que parece, a mesma coisa. Como, porém, não defende a tese como uma plausibilidade imparcial, para a solução da educação dada pelo Estado e, ainda assim, independente, mas simplesmente como recurso de transferir o poder de educar à Igreja, toda sua argumentação soa falso. Não quer acompanhar a idéia até o fim. A educação pertence aos pais. Muito bem. Como vão eles organizá-la? Entregando à Igreja. Ótimo. Mas há várias igrejas... E há os que não têm igreja... Daí a necessidade de uma escola imparcial. Assim, parece, que os conselhos eleitos, à maneira democrática, seria a melhor solução. Por que não a defende? Como imagina o senhor organizar os pais para a educação de todos? Já notou que "pais" às vezes significa "pais" de certa classe? E os pais das outras classes? Os padres substituiriam os pais. Mas já notou o Sr. como os padres são poucos no Brasil? No artigo de hoje, porém, o que desejo notar é sua revelação que o poder de educar pertencerá ao diretor do colégio ou ao reitor da universidade, que pensaria, segundo creio, de acordo com a confissão religiosa do estabelecimento. E os estabelecimentos públicos? Não tenho dúvidas em aceitar escolas confessionais - mas, desejo também liberdade para as escolas públicas. Não seria possível aceitar a idéia dos pais organizados em conselhos dirigindo também o ensino público? Essa idéia que é mais extrema que a sua ainda não encontrou nenhum apoio católico. Será que os católicos não acham que vão ser a maioria nos conselhos? Ou, na realidade, não têm confiança nos pais mas nos padres? Defenderá o Sr. realmente, como defendo eu a liberdade do ensino, ou a transferência a outro senhor, à Igreja? Havendo os pais conquistado a liberdade de crença, não devem ter eles logicamente a liberdade de escola? Essa liberdade só existirá com uma escola imparcial entre as religiões. Essa imparcialidade não é irreligião, mas, simplesmente, tolerância entre as religiões. O dogma porém não o deixa ser tolerante. Parece traição. Quer outra demonstração dessa intolerância, dessa dureza, desse sectarismo? O mau gosto de suas observações sobre o índio brasileiro, nesse mesmo artigo de hoje. Por que tanta raiva do índio? Foram a nação vencida. Muito bem. Mas o Sr. sabe que o vencido não se extingue mas confunde-se com o vencedor e sobre ele exerce influência por vezes considerável. Afinal somos índios, negros e brancos. E um dos nossos maiores orgulhos é o de havermos contribuído para o que parece uma verdadeira democracia racial. Como os índios não eram católicos, o Sr. não os julga brasileiros. Brasileiros são apenas os brancos católicos que aqui aportaram em 1500. E os pretos? Será que também não são a nação? Essa idéia de nação sectária será realmente cristã. O samaritano era o próximo para Jesus. Para Corção, nem o índio é o seu próximo. E possivelmente, nem o preto. E também, por certo, nenhum nativo desta terra, que não aceite as suas crenças. Francamente, neste mundo diverso e plural, a questão não é de ortodoxia, mas de tolerância entre as ortodoxias. É uma pena que o Sr. não possa contribuir para essa generosa convivência humana. A leitura do padre Teithard de Chardin podia ajudá-lo a ver mais globalmente a aventura do homem na terra. Afinal ser católico deveria ser um dos modos de ser universais. 

Anísio Teixeira