LOBATO, Monteiro. Carta a Anísio Teixeira, Buenos Aires, 12 ago. 1946.
Localização do documento: FGV/CPDOC - Arquivo Anísio Teixeira - ATc 28.06.22.
Carta publicada no livroConversa entre amigos: correspondência escolhida entre Anísio Teixeira e Monteiro Lobato. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas / CPDOC, 1986. p.100.

Buenos Aires, 12. 8. 946

Anísio

Aqui me chegou a notícia da Meridional sobre o convite de Julian Huxley para que vás funcionar como matéria cinzenta num dos lobos cerebrais do mundo - e exultei! Vi confirmada aquela minha dedicatória, que foi suprimida pelo medo do Otales, na qual eu dizia que você não cabia no Brasil. Huxley viu isso e te mudou do país excessivamente pequeno para o talvez único que te convém. Que país pode convir a você, Anísio, senão esse país ideal da United Nations Educational & Cultural Organization? A grande coisa deste mundo moderno, Anísio, é que há o Padre Olímpio e há também o Julian Huxley.
Diz a notícia que você se prepara para seguir para Londres, e eu apresso-me a mandar esta, voando, para a Bahia, na esperança de que ainda te alcance. Os verdadeiros valores que o Brasil possui se vêem na contingência de emigrar para que possam realizar seu destino de valores humanos, já que em nossa triste terra o Padre e o seu capanga o Soldado lhes proíbem qualquer forma de realização. O fato de Anísio Teixeira ter ficado anos no Brasil parado, afastado da ação pública, forçado a empregar seu gênio numa função de comércio, coisa ao alcance de qualquer galego, foi o que mais me deu a medida do fracasso que somos como povo ou país - espetáculo tão triste que me levou, na velhice, com todos os meus cabelos brancos, a mudar de terra; a fugir para não presenciar uma decomposição progressiva e irremissível. Mas agora me sinto contente, ao ver que Anísio "foi chamado a servir" não à pátria chica que não o quer, mas à humanidade. E radiante de alegria, aqui das margens do Prata eu te abraço radiante. Nunca me conformei com o ostracismo da tua inteligência, e pois exulto de vê-la reconhecida e chamada - e por quem, por Julian, esse atual Gran Señor da Dinastia da Inteligência dos Huxleys.

Lobato

 

LOBATO, Monteiro. Carta a Anísio Teixeira, Buenos Aires, 1 jan. 1947.
Localização do documento: FGV/CPDOC - Arquivo Anísio Teixeira - ATc 28.06.22.
Carta publicada no livroConversa entre amigos: correspondência escolhida entre Anísio Teixeira e Monteiro Lobato. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas / CPDOC, 1986. p.101-103.

Buenos Aires, 1º 1. 947

Anísio

Minha primeira carta do ano quero que seja para você. Recebi afinal a tua de setembro 7, a qual fez duas viagens para cá em virtude de erro de endereço. Meu número na Sarmiento é 2.608, e puseste 3.608.
Li-te no bonde, de volta para casa - e meus olhos se umedeceram. Que revanche a nossa, Anísio! Porque tuas vitórias são vitórias de todos os teus adoradores - eu já não digo amigos, palavra muito surrada. Meu primeiro ímpeto foi escrever um grande artigo de despique, para o Estado ou o Correio da Manhã, baseado nos informes que me dás. E hei de escrever. É preciso que os Olímpios e a urubuzada se remordam, com estas nossas vitoriazinhas parciais.
Lembro-me de quando te vi no Rio de Janeiro, traqué pela polícia, escondido pelos amigos como um grande criminoso - e naquela ocasião também chorei. To whom the bells toll? Todos estávamos implicitamente perseguidos, foragidos, escondidos com você, enquanto lá fora o tumor Vargas sorria com o seu charuto e entregava a Cultura Brasileira aos percevejos da Coisa Romana.
Mas o tempo passa, há a Lei do Ritmo, e se na superfície a Libertação do Espírito Humano sofre obnubilações e mesmo demorados eclipses, subterraneamente a nossa vitória caminha sempre, como a toupeira - ou como o Pato Donald em certas fitas do Disney. Inda esta semana vi uma assim, Donald jogando pólo. Em dado momento, havendo engolido a bola, e debaixo da perseguição tremenda de todos os jogadores a cavalo, o pobrezinho afunda terra adentro e vai como uma minhoca na direção do goal... Nós, os Donalds da Liberação, fizemos isso naquele ano, Anísio: afundamo-nos como minhocas terra adentro e prosseguimos. E aonde foi você sair? Na UNESCO, elevado à função de Lobo Cerebral do Mundo de Amanhã! E elevado a essas alturas, por quem, Anísio? Por Julian Huxley, outro Lobo Cerebral do mundo, o grande filho do Huxley que deu um dos mais bem dados golpes na Coisa Teológica. O Venâncio chegou a saber do teu caso? se soube, juro que morreu de emoção. Excelente Venâncio! Por que é que criaturas assim morrem?
Dez anos passou você caminhando como minhoca por baixo da terra, escondido da Reação Triunfante - mas caminhando sem o saber. E bem consideradas as coisas, talvez tenha sido aquele golpe da Reação, determinante dos dez anos de minhocamento, que te elevou à posição atual. Abençoado seja o cônego Olímpio e todos os percevejos que te seguiram! Um deles lá se foi - mas não estará na esfera em que está o Venâncio, o Lourenço, ou o Pissinhas, como dizia o Maneco Lopes. Depois do que te fez, teve a audácia de escrever-me sobre qualquer coisa. Não respondi.
Anísio: estou curioso por saber dos aspectos culinários do teu caso. Quanto ganhas? É posição temporária ou vitalícia? Não posso conceber um lobo cerebral provisório ou temporário, mas que não pode ser neste mundo? Meu último livro vai ter esse título: Não há o que não haja.
E onde moras? Tua carta vem de Paris. Ficas aí ou ... e que tal a tua sensação de Orientador da Educação do Mundo de Amanhã - o nosso mundo - o mundo que vai enterrar o padre Olímpio com todos os balandraus de Roma?
Ah, que vontade de estar com você aí agora! De repente sou capaz de ir - para te ajudar nalguma coisa. Minha situação hoje é a dum jetsam, flotsam - estou boiando à tona do mundo. Em fevereiro vou para o Peru. A Argentina já não me interessa. Não tem profundidade, muito rasa, muito moderna, muito imigracionista, muito São Paulo. No Peru, por baixo da coisa européia começada com Pizarro, há todo o passado inca. Peru e México: únicas águas fundas das Américas. Tudo mais, raso como a lagoa rasa. Os próprios Estados Unidos começam com os puritanos de Plymouth; nós, no Brasil, começamos com Cabral. Mas no Peru e no México já havia duas velhas e notabilíssimas civilizações, muito superiores à sórdida civilização católica que a destruiu e saqueou.
Quando me cansar do Peru vou para... Colômbia, Venezuela, México. Com isto entretenho Purezinha e evito de voltar para o Brasil do cônego Olímpio e do General Dutra, que é o que, sentimentalmente ela quer.
E se depois eu fosse par aí, a fim de te ajudar nalguma coisa? Poucos anos terei de vida, estou boiando no mundo e posso morar aqui como na China ou aí. Pense nessa hipótese, Anísio, e escreva-me. Use o endereço abaixo, porque ao vir da carta posso já não estar aqui.
E receba lá um abraço da Purezinha e outro da Rute, a qual rivaliza comigo no culto anisiano.

Adeus, adeus, adeus, Anísio querido...

Lobato

Calle Piedras 346

 

TEIXEIRA, Anísio. Carta a Monteiro Lobato, [a bordo do Queen Elizabeth], 29 jan.1947.
Localização do documento: FGV/CPDOC - Arquivo Anísio Teixeira - ATc 28.06.22.
Carta publicada no livroConversa entre amigos: correspondência escolhida entre Anísio Teixeira e Monteiro Lobato. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas / CPDOC, 1986. p.104-107.

Janeiro, 29, 1947

Meu grande Lobato

Estou lhe escrevendo do Queen Elizabeth, de viagem para New York. Pouco antes de deixar Paris, recebi sua carta e posso lhe dizer que você, mais uma vez, determinou a direção da minha vida. Estava em pleno labor deliberativo a respeito do meu trabalho na UNESCO e, confesso, inclinado a me encaramujar na Bahia cuidando da criação de quatro Teixeirinhas. Sua carta sacudiu-me como uma rajada de vento e resolvi ficar. Esta viagem ainda é resultado do propósito de tudo abandonar. Era a minha viagem de volta: a primeira parte da viagem de volta. De New York tomaria um outro barco para a Bahia, sem querer passar pelo Rio. Não pude cancelá-la, mas, vou até New York. Volto dali para Paris e para a UNESCO. E tudo isto veio muito de sua carta. O seu entusiasmo me pegou. É espantoso que você em Buenos Aires veja a UNESCO melhor do que eu! Lendo e relendo a sua carta, comparo-a às cartas dos namorados sobre casamento. A vida conjugal, entretanto, é tão diferente! Dá-se um pouco o mesmo com a UNESCO. Amar a UNESCO é uma coisa e casar-se com ela outra. Com sete meses de vida marital, andava triste e desconsolado. Nada me fazia crer na UNESCO dos nossos sonhos. Vem você daí, de longe, e me diz tais coisas que não tenho jeito senão reconsiderar. Os sonhos não se realizam sem que primeiro se armem os andaimes. E uma construção em andaimes pede imaginação e amor para ser compreendida. Vou voltar à UNESCO para uma nova experiência e, no curso dessa experiência, conto com você em Paris.
A UNESCO é, ao mesmo tempo, uma obra tardia e uma obra prematura. É esta a sua contradição essencial. Tardia porque, de muito, o mundo pedia um centro intelectual para unificação de sua experiência e direção do seu progresso. A UNESCO devia ter começado a existir desde o dia em que Galileu revelou àqueles bobalhões medievais o método experimental. Criado o método científico, a UNESCO era uma necessidade, para aplicá-lo, para dirigir os resultados da sua aplicação à vida. Em vez da UNESCO, tivemos, porém, uma ciência e uma inteligência nacionais e nacionalistas até a apoplexia final hitleriana. Então, os homens acordaram para a UNESCO. Dentro do pesadelo da catástrofe revelaram-se generosos e lúcidos. Mas o pesadelo passou. O mundo sobreviveu à débâcle, graças a uma UNESCO improvisada na América com os cientistas de todo o mundo, uma UNESCO, que produziu o fogo atômico e armou o homem com o poder e... o dever de ser sábia e ajuizada. Era natural que essa UNESCO se constituísse devidamente e tomasse de vez a direção do progresso humano. O sonho dos Wells e Lobatos estaria realizado. O mundo teria afinal sua máquina de pensar. Mas... com a vitória - que ironia! - os homens voltaram às suas divisões antigas. E dentro dessas divisões a UNESCO, que pretenderam criar, é algo de terrivelmente prematuro. Os governos puseram-na para um lado e o Huxley para outro. Mando-lhe a introdução do Huxley à obra da UNESCO. É esplêndida, mas aquilo é pensamento pessoal do Huxley, e os homens dos governos, os que mandam, não o aprovaram. Consentiram na publicação como contribuição pessoal do Huxley e não do diretor-geral da UNESCO. Se Wells ainda estivesse vivo creio que estigmatizaria a pequenina UNESCO que estamos construindo.
Mas que quer você? São assim os homens e talvez só com a terceira catástrofe venham a aprender a viver uns com os outros. É horrível pensar estas coisas e ainda mais horrível cooperar em obras frustras. Chocar aqui na UNESCO o próximo cataclisma é o último dos meus desejos. A sua carta, entretanto, fez-me reconsiderar tudo isto. Vou ficar mais algum tempo. Pensar é uma coisa, realizar um pensamento outra. Nada exige tanta paciência e tanta "ciência do possível". Vou ver se não sou eu que estou errado com a minha impaciência wellsiana. E se você vem a Paris, juntos discutiremos tudo isto. A UNESCO está a constituir-se definitivamente. Os meus companheiros insistiram por que ficasse. O Huxley declarou-me que desejava muito conservar-me e sua carta acabou o trabalho. Deixo uma vida privada que começava a ser interessante e vou ser funcionário intelectual do que você chama o cérebro do mundo. Serei um pouco office-boy desse cérebro se ele chegar a ser mesmo cérebro. A minha posição na UNESCO é de conselheiro com o ordenado de aproximadamente duas mil libras. Isto, em França, reduz-se a 80 mil francos por mês, o que é muito pouco. Com o câmbio artificial da França sofro uma redução de 50% no meu salário. No Brasil, vendendo minhas máquinas teria muito mais. Pouco importa. Não quero decepcionar os que acreditam em mim e não quero também me decepcionar. Somos de um modo ou de outro, homens públicos e o nosso dever é s’engager. Je m’engage...
Em New York, para onde sigo com Emilinha, que veio encontrar-se comigo em Paris, vou estar com o Jaime a acertar os meus negócios da Bahia. Emilinha seguirá para o Brasil, para dali voltar com a meninada, e eu irei recomeçar, em Paris, a experiência internacional.
Se você estiver no propósito de vir, poderá fazê-lo logo, ou poderá esperar a Conferência Geral da UNESCO, em novembro ou dezembro no México - , juntos debateríamos a UNESCO e você viria comigo para Paris se a experiência ainda tivesse interesse... Este ano de 47 parece-me que será o ano de amadurecimento da crise do mundo. O tratado de paz com a Alemanha marcará se vamos ter nova guerra ou se progrediremos em paz, isto é, unesquianamente. 1946 foi um ano de incertezas e indecisões. Mas por isso mesmo, deixou os problemas em aberto. Vamos sentir melhor as direções em 1947. Por isto mesmo, precisávamos nos encontrar este ano.
Não quero terminar esta, sem uma palavra por esse Queen Elisabeth que representa tão bem tudo que já é possível e tudo que se não quer fazer. O vapor é um grande hotel flutuante. Tem 14 decks. Estou a escrever-lhe do 12º, que é um salão com seis ou sete metros de altura e de uma beleza e elegância que não vi ainda em nenhum hotel. Estou no vapor desde às três da tarde. São 10:30h e não vi ainda o mar. E não sei se o verei. Também nos bons hotéis não se olha para a rua. Deixei Londres coberta de neve, com 17º F. abaixo do ponto de congelamento. A temperatura aqui no Atlântico é a mesma, senão mais baixa. O vapor está porém com a mais agradável das temperaturas. O homenzinho que Galileu criou vence o mar, o frio e a distância. Do telefone que tenho em minha cabine posso falar com qualquer ponto da terra, como também conversar com qualquer pessoa do hotel que é o navio.
Tão fácil generalizar isto! Mas os governos - os homens aos quais está confiada a direção do mundo - são homens municipais e só pensam em seus municípios que são hoje suas nações...
Entretanto, estamos muito mais preparados do que pensamos para a nova escala mundial. Não há um só povo contente com a escala municipal. Na Inglaterra há juízo, há esforço, há plano - mas a população está apática. Na França - não há nada disto e a apatia se fez pândega. Na Alemanha e Itália - um um semidesespero, senão completo desespero. Na Rússia - não se sabe. Nos Estados Unidos - uma próspera inconsciência. Na China - a guerra civil. No Oriente Próximo - fermentam forças obscuras. Na Índia - um colosso, tenta erguer-se em meio à solércia hábil dos ingleses. Na América do Sul - peroniza-se ou preparam-se novas peronizações. Na Europa Central - ensaiam-se democracias à maneira sul-americana. Tudo isso pedia um plano de conjunto que despertasse as energias de uma fé e um esforço comuns. A "escala mundial" traria isto, estou certo. Wells morreu descrente e nós... Será que nós também vamos morrer sem poder crer no óbvio, no razoável, no evidente? Só o evidente parece ser realmente invisível!
Bem, Lobato, já bati muito o meu incoercível papo. Escreva-me. Preciso de suas cartas e ainda mais preciso de vê-lo. De New York lhe mandarei o meu endereço. Devo estar em Paris no fim do próximo mês.
Lembre-nos a d. Purezinha e a Rute e creia no seu de todo coração

Anísio

P. S. Quem sabe se você não poderia vir logo a Paris? Não há melhor ponto de observação e a França pode dar-nos as maiores surpresas.

TEIXEIRA, Anísio. Carta a Monteiro Lobato, Nova York, 13 fev. 1947.
Localização do documento: FGV/CPDOC - Arquivo Anísio Teixeira - ATc 28.06.22
Carta publicada no livro Conversa entre amigos: correspondência escolhida entre Anísio Teixeira e Monteiro Lobato. Salvador: Fundação Cultural da Bahia, Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas/CPDOC, 1986. p.108.

Fevereiro, 13, 1947

Lobato

A carta junto escrevi-lhe de bordo. Estava em pleno estado de "imparcialidade" e chegara àquelas conclusões. Em New York pus os pés em terra. E senti que eles não tinham a leveza que supusera em pleno mar - cinco "paralelepípedos" os amarravam ao chão. A mulher e quatro filhos. E todas as decisões ruíram. Telegrafei à UNESCO que considerava minha volta impossível e estou esperando a ... reação.
É uma pena. É uma dor. Mas que hei de fazer? Vou carregar a minha "carga" de que, aliás, - somos mesmo múltiplos! - tenho saudades de não poder mais. Vi sua carta ao Coelho e chorei. Que hei de fazer para lhe agradecer e para que você me perdoe a decepção? Somente dizer-lhe que minha decepção também não é menor.
Até à vista. Receba todo o coração do muito, muito seu

Anísio