LOBATO, Monteiro. Carta a Anísio
Teixeira, Nova Iorque, 12 abr. 1930.
Localização do documento: FGV/CPDOC - Arquivo Anísio Teixeira - ATc 28.06.22. 3
Carta publicada no livro Conversa entre amigos: correspondência escolhida
entre Anísio Teixeira e Monteiro Lobato. Salvador: Fundação Cultural do Estado
da Bahia, Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas / CPDOC, 1986. p.51-53
New York, Abril, 12, 930
Grande Anísio
Tivemos cá seu cartão `a Rute, do
sertão, à caçadora e agora a carta de 21, da Bahia, Largo da Palma 9. Que coisas
gostosas, esse sertão fora do mundo e dos tempos e esse largo, que me represento o
contrário da minha Broadway - sem tráfico, sem carvão de pedra esvoaçante, com um
cachorro lá longe, dormindo sob a palma que dá nome ao lugar, e tua casa à esquerda de
quem vem da cidade, de down town - senhorial, janelas de arco, espaçosa construída por
um antigo capitão-mor, acolhedora e fresca. Apesar do muito que há por cá, daria algo,
certos momentos, para achar-me lá, de prosa contigo na calçada, espichado numa
preguiçosa e acompanhando com os olhos e o comentário os raros passantes que a cruzam...
E havia o que te dizer, meu caro freguês dos domingos. Só a história das minhas
aventuras de cinco meses ininterruptos na Wall Street encheria uma tarde.
Porque entrei de cabeça na especulação em stocks, logo no dia do crash de 29 de
outubro, e na maranha estou até agora. Dei tacadas estupendas e fiz burradas inda
maiores, o que há de thrilling. Mas... só contando. Carta é uma joça.
Estou a escrever-te na sala de estar, com Purezinha defronte, de óculos a Harold Lloyd no
nariz, também a fazer correspondência interminável nas quintas, e a Rute botando
bigodes nas figuras de um Shadowland. Está também a Marta e uma intrusa que não
conheces, Miss Joyce. É uma americanazinha nascida a 29 de fevereiro deste ano, no
Womans Hospital, que me pregou a peça de me fazer grandfather quando menos o
esperei. Avô, estou essa coisa, Anísio...
E também lendo de novo. Passei meses tão absorvido com a Wall Sreet que quase
analfabetizei-me. Quem me salvou foi o Will Durant. Fui há dias ao drugstore vizinho
comprar uma seringa para Miss Joyce e dei com uma nova edição da História da Filosofia
por um dólar. Lembrei-me do que disseste do livro e comprei-o. E fiz mais: li-o, e com
regalo e com assombro por não achar ressaibo de sectarismo no expositor. Poucas vezes se
terá escrito sobre filósofos e filosofias com encanto de romancista bom, como o fez
Durant. E lido Durant pus-me a ler outras coisas e parece que estou curado da obsessão
wall-streeteana.
Anísio, Anísio - deixaste marca nesta casa. Continuas lembrado e citado. Ninguém se
aperta quando precisam de um termo de comparação - eu em matéria mental, Purezinha em
matéria de delicadeza de sentimentos e finuras morais. Agarramos logo no Anísio. Ainda
ontem, comentando um deslize de certa pessoa, Purezinha te puxou à baila.
- "Estava livre de um Anísio fazer isso".
E fique certo, meu caro, que você diminuiu New York com a deserção. Deixou nossos
domingos vazios e insípidos - e estragou museus e novidades. Se vou sozinho, sinto
nostalgia dum companheiro; se vou acompanhado, arrependo-me. Comparo o companheiro que
tive e acho muito vulgares e flat os que o acaso me depara.
E a prova de que não te esqueço, está no recorte incluso. Ao ler esse
"desânimo" da Galli Curci quanto às óperas lembrei-me daquele nosso Wagner no
poleiro do Metropolitan e cortei o comentário para to mandar quando regressasses do
sertão, glorioso com os tatus e carrapatos abatidos. Lá vai ele. Verás que tive razão
em me rir da machine - e você em concordar comigo.
Professor de filosofia da Escola Normal... Que castigo! Pegar dum Anísio, pô-lo no
ambiente da Columbia um ano e depois, professor de filosofia da educação na escola
normalíssima da mulata velha...
Eu continuo com as minhas idéias, sentindo um cansaço infinito cada vez que me lembro da
pátria amada. Interessante, é de cansaço minha sensação. Se tiro fora o pensamento,
saro. Mas se volto a lembrar-me, derreio. Há 47 anos que sou brasileiro, como isto
esfalfa.
Estamos à espera da visita do Júlio Prestes. A colônia está assanhada com a
perspectiva de termos cá o novo César e eu com ela. Há de sair qualquer coisa de bom
para mim disto, quer dizer, de protelatório do meu temido regresso.
Estou designado pelo meu ministério para em agosto ir à California, representar o Brasil
numa conferência agrícola. Isto vem proporcionar-me a realização de um velho sonho -
cortar o país de auto, conhecer o maravilhoso Colorado e o deserto e Hollywood e tudo o
mais. Pretendo ir com a tribo - e tenho certeza de que cem vezes pelo caminho uma
exclamação nos brotará incoercível:
- "Que pena não estar também o Anísio!"
E eu terei estragada a impressão das belezas que irei ver à lembrança de que o
companheiro estará àquela hora prelecionando meninas desatentas e desinteressadas lá no
fundo do Recôncavo. O Recôncavo - haverá som glótico que melhor pinte a tua Bahia que
esta palavra? Re-côn-ca-vo...
Adeus, Anísio. De vez em quando faça-se presente com uma prosinha escrita que nos
encontrará todos de cérebro e coração abertos.
Adeus
Lobato
